Para isso fomos feitos:Para lembrar e ser lembradosPara chorar e fazer chorarPara enterrar os nossos mortos —Por isso temos braços longos para os adeusesMãos para colher o que foi dadoDedos para cavar a terra.Assim será nossa vida:Uma tarde sempre a esquecerUma estrela a se apagar na trevaUm caminho entre dois túmulos —Por isso precisamos velarFalar baixo, pisar leve, verA noite dormir em silêncio.Não há muito o que dizer:Uma canção sobre um berçoUm verso, talvez de amorUma prece por quem se vai —Mas que essa hora não esqueçaE por ela os nossos coraçõesSe deixem, graves e simples.Pois para isso fomos feitos:Para a esperança no milagrePara a participação da poesiaPara ver a face da morte —De repente nunca mais esperaremos...Hoje a noite é jovem; da morte, apenasNascemos, imensamente.
Poema de Natal - Vinicius de Moraes
poema de natal
lucidez perigosa
Estou sentindo uma clareza tão grandeque me anula como pessoa atual e comum:é uma lucidez vazia, como explicar?assim como um cálculo matemático perfeitodo qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizervendo claramente o vazio.E nem entendo aquilo que entendo:pois estou infinitamente maior que eu mesma,e não me alcanço.Além do que:que faço dessa lucidez?Sei também que esta minha lucidezpode-se tornar o inferno humano- já me aconteceu antes.
Pois sei que- em termos de nossa diáriae permanente acomodaçãoresignada à irrealidade -essa clareza de realidadeé um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus,porque ela não me servepara viver os dias.Ajudai-me a de novo consistirdos modos possíveis.Eu consisto,eu consisto,amém.
A lucidez perigosa - Clarice Lispector
imensamente grata
poema olhando um muro
o rio da vida
Vida... Através do tempo, quantos têm procurado sua definição... Sábios, filósofos, psicólogos, socialistas, escritores, poetas, santos e pecadores. Homens de fé e criaturas vazias, cada um procura e faz valer sua melhor definição. Todos melancolicamente pessimistas.
A vida é um vale de lágrimas e nós, degradados filhos de Eva. Está numa belíssima oração da igreja, repetida por milhões de angustiados.
A igreja, mesma, nunca foi otimista com relação à vida. Os seus santos, padres, reformadores, teólogos, doutores sempre foram os grandes masoquistas do passado. Só pela renúncia, pelo sacrifício e pela dor se alcançaria o reino dos Céus.
“Esta vida é um inferno! Vida desgraçada!” _ quantos ainda imprecam. O pecador estava sempre a merecer punição. O pecado, o grande mal da humanidade. A vida era dogmática, plena de temores, de punição eterna e de condenação total.
Ao consolo humano a igreja oferecia suas imagens dolorosas e trespassadas. Seus santos severos, abstratos, chagados, mutilados e supostamente felizes na sua imensa dor e sacrifício. Desse mundo dolorido e triste ficou, para a literatura e para a poesia passada e contemporânea, o ranço e a constante de palavras negativas tais como lágrimas, dor, sofrimento, simulados em versos e poemas supostamente líricos e românticos. Sempre presente a palavra morrer e morte. Mesmo os jovens escritores e poetas modernos não conseguiram se liberar de conclusões sinistras e ultrapassadas. Através de gerações ficou no inconsciente o velho e sólido embasamento pessimista e de imensa tristeza.
Entre tantas comparações mal-sinadas da vida, uma deu-me sempre impressão viva e direta.
O rio da vida... Manso e tranqüilo para uns, águas revoltas, sujas e tumultuadas para outros.
Comparável a um longo e caudaloso rio, rio-mar, assim eu sinto a vida onde cada qual lança o seu barco através do tempo e a grande caudal vai levando a todos, em águas mansas ou bravias, ao destino final.
Há os que fazem a travessia nos grandes transportes de luxo. Música, danças, jogos, diversões, manjares, vinhos, festas e festivais.
Há os que passam nos barcos coletivos, meio a meio, onde tudo vale.
Outros em embarcações confortáveis, bom timoneiro no leme, atento às vagas, desviando-se dos rochedos.
Há os que vão em pequenos barcos com seu motor de popa. Outros na força dos remos e tantos em barquinhos remendados, vazando água. Alguns em frágeis canoas inseguras e tantos em jangadas, abertas a todas as tempestades e que deixam de aportar.
Um dia, meu barco foi lançado nesse rio-mar da vida. Eu era jovem e o meu barco, inseguro. Vivi longo tempo calafetando o barco que fazia água. Defendi com denodo o pequeno e pobre barco, vigilante da carga que levava. Num dia de morte meu barco se abriu e me achei sozinha, bracejando na tormenta e a carga sobre mim. Tinha os dentes cerrados e bracejava sempre, vendo apenas na distância uma pequenina estrela verde, apagando, acendendo... Sentia agarrados aos meus cabelos, às minhas orelhas, às minhas espáduas cinco anõezinhos que devia levar a salvo, longe, longe, lutando, lutando, bracejando sempre, sozinha, dentro de um mundo indiferente e aflito.
Eu era a última? Não.
Via passar ao meu lado barcos destroçados. Corpos de náufragos, restos de embarcações naufragadas. Crianças abandonadas ao acaso, solitários agarrados a uma tábua, criaturas desanimadas e maldizentes, destroços de vidas despedaçadas, arrastadas nas águas revoltas e sujas desse rio-mar sem fim, e eu bracejava sempre, presos aos meus ombros, agarrados aos meus cabelos, meus anõezinhos.
Escorrendo todas as águas amargas, águas de cinza e sal da longa travessia, um dia me encontrei na margem e a carga me desceu dos ombros.
Olhei num espanto. Os anõezinhos que eu carregara agarrados aos meus cabelos, às minhas espáduas, às minhas orelhas eram cinco gigantes que tinham me trazido até ali, até o barranco final. Meus cabelos estavam brancos, meus ossos curvados, minhas carnes quebradas. Eu tinha envelhecido.
De um lado logo saiu um gigante e disse a uma das minhas: vamos fazer nosso barco... Eu lhes dei a benção e eles partiram cantando. Veio outro e disse à outra minha: vamos fazer nosso barco... Eles partiram sorrindo e eu os abençoei de novo. Depois outro, mais outro: todos se foram felizes e eu lhes dei a grande benção. Por último, uma linda jovem levou o meu gigante. Foram fazer os seus barcos da vida e eu lhes dei a última benção e eles partiram em alegria.
Estou sozinha na margem final. Sentada na pedra do barranco vejo a ronda dos barcos que se vão na corrente da vida e escuto a música do amor que vem de longe. Dos barcos que a correnteza vai levando me acenam lenços brancos de adeus e eu respondo com o cântico solene das gerações.
O rio da vida – Cora Coralina – Meu livro de cordel
coisas boas de Goiás: Cora Coralina
Seu nome verdadeiro era Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Quando completou 95 anos, ela disse: “venho do século passado e trago comigo todas as idades do mundo”. Morava na Casa Velha da Ponte, às margens do rio Vermelho, e sempre recebeu, gentil, todos que a procuravam em Goiaz Velho, sua cidade natal. Cidade de pedras angulares, de paralelepípedos que acolhem românticas pantomimas de violinos e luares, as sombras móveis e noturnas de seus habitantes projetadas nas paredes das casas, antigos mognos emoldurando janelas e donzelas, a Santa Bárbara ano inteiro, Iansã adormecida e bela, e todas as cores da serra inventando um cenário de natureza caprichosa. Nessa cidade, as mãos de Cora Coralina trabalharam o pão, o açúcar e o verso:
De pedra foi o meu berço.
De pedras têm sido meus caminhos.
Meus versos: pedras quebradas no rolar
E no bater de tantas pedras.
Eu sei que foi assim. Sei que a sua flor nasceu da pedra. Sei que da pedra vieram doces brancos, sob a forma de bichinhos, esbeltos cisnes. Sei que retirando as pedras ela descobriu a terra e que na terra suas mãos cumpriram a semeadura, o plantio, a colheita. E até alegraram-se quando dos bananais surgiram eternos confeitos adoçados.
Cora Coralina. Nossa Senhora Feminina, anti-imagem tanto de belle-époque, quanto de televisão-mulher, dona de hábeis e preciosas mãos: só o que lhes iguala é a morte. Suas mãos, pequeninas e frágeis para carregar pesados estandartes, mas que cavoucaram a terra, amassaram o trigo, varreram, cozinharam, lavaram. Mãos fortes que abençoaram filhos, “mãos domésticas e remendonas”, que escreveram estórias dos becos de Goiás e poemas do seu ventre de mulher.
Mulher, eu disse. De fibra e de pedra e milenar sabedoria, com seus olhos espiões que vieram do passado para transmitir a luz das suas experiências de vida. E foi esta mulher de porte miúdo e alguma vaidade na voz quem me disse: “A mulher tem que agradar o seu homem, até levar-lhe os chinelos quando ele chega em casa...”. Não me espantei. A lição é de Cora Coralina, que nasceu antes da poesia e de qualquer feminismo. Sua luta foi só trabalho, e nem por melhor salário, mas por amor ao trabalho, ao companheiro de jornada. Fazer um doce, buscar um chinelo, nada aviltaria a dignidade de uma Cora Coralina.
“Meu companheiro de vida será um homem corajoso de trabalho, servidor do próximo, honesto e simples, de pensamentos limpos. Seremos padeiros e teremos padarias.”
Não, a vida não se desgovernou nas mãos de Cora. Pelo contrário, ela soube muito bem exercê-la e a todos os seus direitos – humanos, políticos e poéticos – e destinar-se, por vontade própria, a ser uma simples, humilde, madrugadora mulher, cuja fé – a pedra imóvel - ajudou a viver e a crescer.
Na literatura, talvez ainda apareça o lugar de Cora Coralina junto a Clarice Lispector e Cecília Meirelles. Cora, que na história vejo como Maria Bonita, coiteira de Lampião; que na sociedade faria a independência dos oprimidos, sabiamente, como o Mahatma fez na Índia. Cora, que no universo está muitos anos- luz adiante de nós, mais perto de seu criador.
Das muitas sabedorias de Cora Coralina, o que mais me surpreende são os segredos desvelados em sua poesia, mistérios da natureza que ela nos traduz em pura realidade. Assim é no poema A Flor, em que ela conta a "maternidade da terra”; em Pão-Paz, poema dos mais universais, onde a trajetória da esperança do alimento começa nos trigais para terminar em todas as mesas. Cora nos revela, cristicamente, o pão.
Raízes, sementes, a terra, o pão, a flor. E as pedras:
"Entre pedras que me esmagavam, levantei a pedra rude dos meus versos."
© 1983-2002 xenïa antunes
Foto da ilustração: © Joaquim Firmino
sou assim
pecadores
o florir
O florir do encontro casualDos que hão sempre de ficar estranhos...
O único olhar sem interesse recebido no acasoDa estrangeira rápida ...
O olhar de interesse da criança trazida pela mãoDa mãe distraída...
As palavras de episódio trocadasCom o viajante episódicoNa episódica viagem ...
Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...Caminho sem fim...
O Florir - Álvaro de Campos
A Carícia Perdida...
Sai-me dos dedos a carícia sem causa,Sai-me dos dedos... No vento, ao passar,A carícia que vaga sem destino nem fim,A carícia perdida, quem a recolherá?
Posso amar esta noite com piedade infinita,Posso amar ao primeiro que conseguir chegar.Ninguém chega. Estão sós os floridos caminhos.A carícia perdida, andará... andará...
Se nos olhos te beijarem esta noite, viajante,Se estremece os ramos um doce suspirar,Se te aperta os dedos uma mão pequenaQue te toma e te deixa, que te engana e se vai.
Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,Se é o ar quem tece a ilusão de beijar,Ah, viajante, que tens como o céu os olhos,No vento fundida, me reconhecerás?
A carícia perdida - Alfonsina Storni
Humildade...
Há muito tempo, Vida, prometeste
trazer ao meu caminho uma doida alegria
feita de espírito e de chama,
uma alegria transbordante, assim como esse
alvo clarão que se irradia
da orla festiva das enseadas,
e entre reflexos de ouro se derrama
do cântaro das madrugadas.
Eu, que nasci para um destino manso
de coisas suaves, silenciosas, imprecisas,
e que fico tão bem neste obscuro remanso
onde apenas se infiltra um perfume de brisas,
imagino a tremer: que seria de mim
se essa alegria
esplêndida, algum dia,
houvesse surpreendido a minha inexperiência!...
A vida me iludiu, mas foi sábia na essência.
Minha alegria deveria ser assim:
Pequenina doçura delicada,
gota de orvalho em pétala de flor,
sempre serena lâmpada velada
que me diluísse as brumas do interior.
Sempre serena lâmpada velada,
símbolo do meu sonho predileto...
Se amanhã tu penderes do meu teto
aureolando minha última ilusão,
- para que eu viva em teu amor e em tua paz,
deixa um rastro de sombra pelo chão...
É nesta sombra que hei de me esconder
quando sentir a falta que me faz
a outra alegria que não pude ter!
Henriqueta Lisboa – do livro Velário (1930 – 1935)
Na Noite Terrivel...
Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver ...
Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras não tem sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.
Na noite terrível - Álvaro de Campos
Grandes são os desertos...
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.
Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,
Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.
Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.
Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.
Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!
Mais vale arrumar a mala.
Fim.
Grandes - Álvaro de Campos
Um dia... ainda arrumo minha "mala"...
Faróis...
Faróis distantes,De luz subitamente tão acesa,De noite e ausência tão rapidamente volvida,Na noite, no convés, que conseqüências aflitas!Mágoa última dos despedidos,Ficção de pensar ...
Faróis distantes...Incerteza da vida...Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,No acaso do olhar perdido...
Faróis distantes...A vida de nada serve...Pensar na vida de nada serve...Pensar de pensar na vida de nada serve...
Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande.Faróis distantes ...
Faróis - Álvaro de Campos
Soneto de Finados...
Lembramos nossos mortos neste diaque consagramos tristes aos finados;passaram para o Além e a lájea friaapenas guarda os corpos sepultados.
Hoje tudo é perpétua nostalgia...Ouvem-se preces, prantos desolados,um porquê inexplicável excruciaaté os corações mais resignados.
Dos páramos celestes desce a luz,iluminando a terra que se habita;e a verdade mais crua se traduz
pela certeza natural e aflitaque fatalmente a todos nos conduzà noite eterna... trágica... infinita...
Soneto de Finados - Ialmar Pio Schneider ou... Menestrel sem Juizo
O Haver...
Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternuraEssa intimidade perfeita com o silêncioResta essa voz íntima pedindo perdão por tudo- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixoEssa mão que tateia antes de ter, esse medoDe ferir tocando, essa forte mão de homemCheia de mansidão para com tudo quanto existe.
Resta essa imobilidade, essa economia de gestosEssa inércia cada vez maior diante do InfinitoEssa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimívelEssa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimentoDa matéria em repouso, essa angústia da simultaneidadeDo tempo, essa lenta decomposição poéticaEm busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
Resta esse coração queimando como um círioNuma catedral em ruínas, essa tristezaDiante do cotidiano; ou essa súbita alegriaAo ouvir passos na noite que se perdem sem história.
Resta essa vontade de chorar diante da belezaEssa cólera em face da injustiça e o mal-entendidoEssa imensa piedade de si mesmo, essa imensaPiedade de si mesmo e de sua força inútil.
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhadoDe pequenos absurdos, essa capacidadeDe rir à toa, esse ridículo desejo de ser útilE essa coragem para comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vaguezaDe quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-serE ao mesmo tempo essa vontade de servir, essaContemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonharDe transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidadeDe aceitá-la tal como é, e essa visãoAmpla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anteriorDe mundos inexistentes, e esse heroísmoEstático, e essa pequenina luz indecifrávelA que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todosDe refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memóriaResta essa pobreza intrínseca, essa vaidadeDe não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidadePelo momento a vir, quando, apressadaEla virá me entreabrir a porta como uma velha amanteMas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirintoEsse eterno levantar-se depois de cada quedaEssa busca de equilíbrio no fio da navalhaEssa terrível coragem diante do grande medo, e esse medoInfantil de ter pequenas coragens.
O Haver - Vinicius de Moraes