Seu nome verdadeiro era Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Quando completou 95 anos, ela disse: “venho do século passado e trago comigo todas as idades do mundo”. Morava na Casa Velha da Ponte, às margens do rio Vermelho, e sempre recebeu, gentil, todos que a procuravam em Goiaz Velho, sua cidade natal. Cidade de pedras angulares, de paralelepípedos que acolhem românticas pantomimas de violinos e luares, as sombras móveis e noturnas de seus habitantes projetadas nas paredes das casas, antigos mognos emoldurando janelas e donzelas, a Santa Bárbara ano inteiro, Iansã adormecida e bela, e todas as cores da serra inventando um cenário de natureza caprichosa. Nessa cidade, as mãos de Cora Coralina trabalharam o pão, o açúcar e o verso:
De pedra foi o meu berço.
De pedras têm sido meus caminhos.
Meus versos: pedras quebradas no rolar
E no bater de tantas pedras.
Eu sei que foi assim. Sei que a sua flor nasceu da pedra. Sei que da pedra vieram doces brancos, sob a forma de bichinhos, esbeltos cisnes. Sei que retirando as pedras ela descobriu a terra e que na terra suas mãos cumpriram a semeadura, o plantio, a colheita. E até alegraram-se quando dos bananais surgiram eternos confeitos adoçados.
Cora Coralina. Nossa Senhora Feminina, anti-imagem tanto de belle-époque, quanto de televisão-mulher, dona de hábeis e preciosas mãos: só o que lhes iguala é a morte. Suas mãos, pequeninas e frágeis para carregar pesados estandartes, mas que cavoucaram a terra, amassaram o trigo, varreram, cozinharam, lavaram. Mãos fortes que abençoaram filhos, “mãos domésticas e remendonas”, que escreveram estórias dos becos de Goiás e poemas do seu ventre de mulher.
Mulher, eu disse. De fibra e de pedra e milenar sabedoria, com seus olhos espiões que vieram do passado para transmitir a luz das suas experiências de vida. E foi esta mulher de porte miúdo e alguma vaidade na voz quem me disse: “A mulher tem que agradar o seu homem, até levar-lhe os chinelos quando ele chega em casa...”. Não me espantei. A lição é de Cora Coralina, que nasceu antes da poesia e de qualquer feminismo. Sua luta foi só trabalho, e nem por melhor salário, mas por amor ao trabalho, ao companheiro de jornada. Fazer um doce, buscar um chinelo, nada aviltaria a dignidade de uma Cora Coralina.
“Meu companheiro de vida será um homem corajoso de trabalho, servidor do próximo, honesto e simples, de pensamentos limpos. Seremos padeiros e teremos padarias.”
Não, a vida não se desgovernou nas mãos de Cora. Pelo contrário, ela soube muito bem exercê-la e a todos os seus direitos – humanos, políticos e poéticos – e destinar-se, por vontade própria, a ser uma simples, humilde, madrugadora mulher, cuja fé – a pedra imóvel - ajudou a viver e a crescer.
Na literatura, talvez ainda apareça o lugar de Cora Coralina junto a Clarice Lispector e Cecília Meirelles. Cora, que na história vejo como Maria Bonita, coiteira de Lampião; que na sociedade faria a independência dos oprimidos, sabiamente, como o Mahatma fez na Índia. Cora, que no universo está muitos anos- luz adiante de nós, mais perto de seu criador.
Das muitas sabedorias de Cora Coralina, o que mais me surpreende são os segredos desvelados em sua poesia, mistérios da natureza que ela nos traduz em pura realidade. Assim é no poema A Flor, em que ela conta a "maternidade da terra”; em Pão-Paz, poema dos mais universais, onde a trajetória da esperança do alimento começa nos trigais para terminar em todas as mesas. Cora nos revela, cristicamente, o pão.
Raízes, sementes, a terra, o pão, a flor. E as pedras:
"Entre pedras que me esmagavam, levantei a pedra rude dos meus versos."
© 1983-2002 xenïa antunes
Foto da ilustração: © Joaquim Firmino
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