Vida... Através do tempo, quantos têm procurado sua definição... Sábios, filósofos, psicólogos, socialistas, escritores, poetas, santos e pecadores. Homens de fé e criaturas vazias, cada um procura e faz valer sua melhor definição. Todos melancolicamente pessimistas.
A vida é um vale de lágrimas e nós, degradados filhos de Eva. Está numa belíssima oração da igreja, repetida por milhões de angustiados.
A igreja, mesma, nunca foi otimista com relação à vida. Os seus santos, padres, reformadores, teólogos, doutores sempre foram os grandes masoquistas do passado. Só pela renúncia, pelo sacrifício e pela dor se alcançaria o reino dos Céus.
“Esta vida é um inferno! Vida desgraçada!” _ quantos ainda imprecam. O pecador estava sempre a merecer punição. O pecado, o grande mal da humanidade. A vida era dogmática, plena de temores, de punição eterna e de condenação total.
Ao consolo humano a igreja oferecia suas imagens dolorosas e trespassadas. Seus santos severos, abstratos, chagados, mutilados e supostamente felizes na sua imensa dor e sacrifício. Desse mundo dolorido e triste ficou, para a literatura e para a poesia passada e contemporânea, o ranço e a constante de palavras negativas tais como lágrimas, dor, sofrimento, simulados em versos e poemas supostamente líricos e românticos. Sempre presente a palavra morrer e morte. Mesmo os jovens escritores e poetas modernos não conseguiram se liberar de conclusões sinistras e ultrapassadas. Através de gerações ficou no inconsciente o velho e sólido embasamento pessimista e de imensa tristeza.
Entre tantas comparações mal-sinadas da vida, uma deu-me sempre impressão viva e direta.
O rio da vida... Manso e tranqüilo para uns, águas revoltas, sujas e tumultuadas para outros.
Comparável a um longo e caudaloso rio, rio-mar, assim eu sinto a vida onde cada qual lança o seu barco através do tempo e a grande caudal vai levando a todos, em águas mansas ou bravias, ao destino final.
Há os que fazem a travessia nos grandes transportes de luxo. Música, danças, jogos, diversões, manjares, vinhos, festas e festivais.
Há os que passam nos barcos coletivos, meio a meio, onde tudo vale.
Outros em embarcações confortáveis, bom timoneiro no leme, atento às vagas, desviando-se dos rochedos.
Há os que vão em pequenos barcos com seu motor de popa. Outros na força dos remos e tantos em barquinhos remendados, vazando água. Alguns em frágeis canoas inseguras e tantos em jangadas, abertas a todas as tempestades e que deixam de aportar.
Um dia, meu barco foi lançado nesse rio-mar da vida. Eu era jovem e o meu barco, inseguro. Vivi longo tempo calafetando o barco que fazia água. Defendi com denodo o pequeno e pobre barco, vigilante da carga que levava. Num dia de morte meu barco se abriu e me achei sozinha, bracejando na tormenta e a carga sobre mim. Tinha os dentes cerrados e bracejava sempre, vendo apenas na distância uma pequenina estrela verde, apagando, acendendo... Sentia agarrados aos meus cabelos, às minhas orelhas, às minhas espáduas cinco anõezinhos que devia levar a salvo, longe, longe, lutando, lutando, bracejando sempre, sozinha, dentro de um mundo indiferente e aflito.
Eu era a última? Não.
Via passar ao meu lado barcos destroçados. Corpos de náufragos, restos de embarcações naufragadas. Crianças abandonadas ao acaso, solitários agarrados a uma tábua, criaturas desanimadas e maldizentes, destroços de vidas despedaçadas, arrastadas nas águas revoltas e sujas desse rio-mar sem fim, e eu bracejava sempre, presos aos meus ombros, agarrados aos meus cabelos, meus anõezinhos.
Escorrendo todas as águas amargas, águas de cinza e sal da longa travessia, um dia me encontrei na margem e a carga me desceu dos ombros.
Olhei num espanto. Os anõezinhos que eu carregara agarrados aos meus cabelos, às minhas espáduas, às minhas orelhas eram cinco gigantes que tinham me trazido até ali, até o barranco final. Meus cabelos estavam brancos, meus ossos curvados, minhas carnes quebradas. Eu tinha envelhecido.
De um lado logo saiu um gigante e disse a uma das minhas: vamos fazer nosso barco... Eu lhes dei a benção e eles partiram cantando. Veio outro e disse à outra minha: vamos fazer nosso barco... Eles partiram sorrindo e eu os abençoei de novo. Depois outro, mais outro: todos se foram felizes e eu lhes dei a grande benção. Por último, uma linda jovem levou o meu gigante. Foram fazer os seus barcos da vida e eu lhes dei a última benção e eles partiram em alegria.
Estou sozinha na margem final. Sentada na pedra do barranco vejo a ronda dos barcos que se vão na corrente da vida e escuto a música do amor que vem de longe. Dos barcos que a correnteza vai levando me acenam lenços brancos de adeus e eu respondo com o cântico solene das gerações.
O rio da vida – Cora Coralina – Meu livro de cordel
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