Contradição...



Sou a contradição de duas almas, - trago-as
gêmeas no mesmo corpo e unidas num só "eu",
- uma, que sonha e canta, e faz das próprias mágoas
poemas para iludir a dor que já sofreu...
Outra, que vive e pensa, e aos contínuos atritos
da vida, já atingiu a realidade em si,
e sublima o recalque de ânsias e de gritos
num sorriso, que às vezes, sem querer... sorri .



Uma crê no mundo e que trabalha o belo,
que constrói com paciência, pelas mãos,
nas ruínas de um castelo desfeito, o castelo
novo que há de hospedar os velhos sonhos vãos!
Outra fere, é impiedosa, irônica e mordaz,
e há muito já concluiu: - é inútil, não me iludo,
a verdade é a ilusão que dura um pouco mais !



Uma, que quando a sós o olhar longe povoa
de imagens que a lembrança vai traçando a giz,
é sonhadora e ingênua, e ingenuamente boa
ao pensar que algum dia ainda há de ser feliz !
Outra, que afeita à luta, ao trabalhar seus dias,
sofre em silêncio e encontra em seu sofrer remédio,
- diz que Deus é um brinquedo das filosofias,
- a invenção de algum louco em momento de tédio !



Uma, cujo otimismo é uma luz franca e clara,
julgando o mundo bom e achando a vida bela;
outra, materialista e rude, - o mundo encara
com um vago e estranho olhar onde há chamas de vela !



Uma que não cresceu e que se sente criança,
irrequieta e feliz, faz da vida um brinquedo,
outra, - que sepultou sua última esperança
e ao agir previdente, às vezes, sente medo...
.......................................................................



Aquela é a voz feliz das planícies contentes
matizadas com as veias azuis das correntes;
essa, é a voz que caiu e rolou das montanhas!
E é sentindo-me assim que às vezes penso, como
pode ter minha vida a forma de um só pomo
e o sabor de dois frutos de árvores estranhas !
.........................................................................



Sou a contradição de duas almas, - uma
onde nas horas suaves de poesia existo;
outra, - a alma que crê não ter alma alguma
e desceu da montanha tal como o Anti-cristo!



Duas margens debruando a risca de um caminho;
duas almas, se aquela é flor, essa é espinho,
se uma pisa na terra . . . a outra se ergue, no céu.



Duas almas... dois lados de uma só moeda;
uma é vinho, sazona; a outra é vinagre, azeda;
uma é amarga, é só sal. . . a outra é doce, é só mel!





Contradição -  JG de Araujo Jorge

1 comentários:

Anônimo 10 setembro, 2006 14:52  

Tu não sabes,
mas foram teus olhos o grande culpado...

Acenaram ilhas verdes de sonho e ternura
ao meu pobre coração náufrago
e desesperado...

(O culpado - JG de Araujo Jorge)

O poema disse tudo...
Beijos linda!

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aos (im)possíveis leitores

"Quem és tu que me lês? És o meu segredo ou sou eu o teu?"
Clarice Lispector

sobre mim...

“Sempre tive a sensação de mal-estar no mundo, uma sensação de não caber no meu espaço, um desconforto diante de meus pares – eu me pergunto: tenho pares? Eu sabia que em mim há uma mulher que tento esconder ferozmente. Tenho medo que as pessoas identifiquem meus excessos, essa quantidade absurda de pernas e braços que camuflo sob a roupa que visto. O que diriam se soubessem das muitas que vivem em mim e tentam bravamente, numa luta corporal, projetar-se do meu corpo? Tomar-me-iam por uma aberração?”

Clarice Lispector