É preciso aprender a brincar...



Hoje, na Feira do Livro de Brasília estive, novamente, com essa encantadora e eterna criança, que mesmo aos setenta anos, ainda brinca no balanço, lembrando-nos que a vida não precisa ser só ferramentas e suas inúmeras utilizações... mas, que deve ser também brinquedo, alegria! É preciso voltar a ser criança para viver e não simplesmente sobreviver!
Dessa vez, dei de presente a ele um livro de poesias de Cora Coralina, precisavam ver a alegria que ele ficou! A partir disso, tivemos uma boa e agradabilíssima conversa, foi bem antes da palestra, portanto ele estava tranquilo em relação a compromissos e tempo! Nunca vou me esquecer! Ah, dessa vez tirei foto, eu mesma! Para não correr o risco de ter instinto assassino novamente em relação aos fotógrafos! rs

Segue uma deliciosa crônica dele!


É PRECISO APRENDER A BRINCAR!


Eu disse "caixa de ferramentas" e "caixa de brinquedos". Santo Agostinho disse "ordem da utilidade" e "ordem da fruição". Freud disse "princípio da realidade" e "princípio do prazer". Martin Buber disse "o mundo do 'isso'" e "o mundo do 'tu'". É tudo a mesma coisa.

Mas quem disse primeiro foram as Sagradas Escrituras. Elas contam que Deus estava infeliz. O vazio em que vivia lhe dava tédio. Por isso teve um sonho. Sonhou com um jardim _não há nada que dê mais alegria que um jardim. E decidiu plantar um jardim para ficar alegre.

Começou nos confins do vazio, criando as grandes estrelas, o Sol, a Lua, e foi afunilando, afunilando, até chegar a um lugar bem pequeno, onde plantou o seu sonho: o Paraíso. Fontes, árvores frutíferas, flores, pássaros, borboletas, animais de todo tipo e até um vento fresco e perfumado que soprava nas tardes.

Cecília Meireles resumiu essa estória num minúsculo poema enorme: "No mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta./ No planeta, um jardim./ No jardim, um canteiro./ E no canteiro, o dia inteiro/ Entre o mistério do Sem-Fim e o planeta/ A asa de uma borboleta...".

Era o jardim das delícias, destino dos homens, destino do Universo, destino de Deus! O Paraíso era melhor que o céu. Prova disso é que Deus passeava pelo jardim ao vento fresco da tarde... Terminado o seu trabalho de seis dias, Deus parou de trabalhar. Entregou-se então àquilo para que o trabalho havia sido feito: uma deliciosa vagabundagem contemplativa. Os olhos olharam para o jardim e experimentam o êxtase da beleza! "E viu Deus que era muito bom..." Os olhos de Deus brincavam com o jardim. Nada havia para ser feito. Tudo para ser gozado.

Nos limites do meu conhecimento, Jacob Boehme (1575-1624) foi o único teólogo que entendeu isso. Herética e eroticamente, ele disse que a única coisa que Deus faz é brincar e que o Paraíso era um lugar para que os homens brincassem uns com os outros e com as coisas ao seu redor _homem e mulher, para que um brincasse com o corpo do outro. Perderam o Paraíso quando desaprenderam a arte de brincar.

Os poemas sagrados colocam as coisas na ordem certa. A semana bíblica começa com os dias de trabalho e termina com o dia de gozo. A igreja alterou essa ordem. Primeiro o dia da contemplação: o corpo descansa para trabalhar melhor...

A forma como as ferramentas são aprendidas é muito simples. Tudo começa com o sonho. O corpo sonha. Pois, como Freud percebeu, ele é movido pelo "princípio do prazer". O sonho é o meu pequeno paraíso. Se fôssemos feiticeiros, se tivéssemos o poder mágico dos deuses, bastaria dizer o sonho em voz alta para que ele se realizasse.

Mas somos fracos seres humanos e temos necessidade de pensar. O sonho dá ordens à inteligência: "Pense, invente as ferramentas de que necessito para realizar o meu sonho". Aí a inteligência pensa. Se o sonho não existe, é inútil dar ordens à inteligência. Ela não obedece.

Veio-me a idéia de que a inteligência muito se parece com o pênis. Não se assuste: o mundo está cheio das analogias mais estranhas. Pois o que é o pênis? É um órgão que, no seu estado normal, é um apêndice ridículo, flácido, que realiza funções excretoras automáticas, que não demandam grandes reflexões. Mas, se provocado pelo desejo, ele passa por curiosas metamorfoses hidráulicas que lhe dão a capacidade de ter prazer, de dar prazer e de criar vida. Se não há desejo, é inútil que a cabeça lhe dê ordens.

Assim também é a inteligência. No cotidiano, ela se encontra num estado flácido que é mais do que suficiente para a realização das tarefas rotineiras. Quando, entretanto, é provocada pelo desejo, ela cresce e se dispõe a fazer coisas ditas impossíveis. Assim viu Fernando Pessoa, que disse: "Sinto uma erecção na alma". Uma inteligência flácida é uma inteligência sem desejo.

Meu amigo Eduardo Chaves observou que, ao contrário do que anuncia o best-seller "Inteligência Emocional", a verdade é o oposto. Não há inteligência emocional. A inteligência jamais procura a emoção. É a emoção que procura a inteligência. É a emoção que deseja ser eficaz para realizar o sonho. Mas a capacidade de brincar também precisa ser aprendida. E ela tem a ver com a capacidade do corpo de ser erotizado pelas coisas à sua volta, de sentir prazer nelas. Nossos sentidos _a visão, a audição, o olfato, o tato, o paladar_ são órgãos de fazer amor com o mundo, de ter prazer nele.

Mas não basta ter olhos, nariz, ouvidos, língua, pele. Os sentidos, no seu estado natural, podem sofrer daquela flacidez sobre que falei... Roland Barthes sugeriu, então, que a educação dos sentidos fosse semelhante ao "Kama Sutra", o ensino das várias posições possíveis de fazer amor com o mundo. Mas isso, é claro, exige que os professores sejam mestres na dita arte...

Rubem Alves

Do outro lado...


Talvez...

do outro lado

só...

o meu desejo de algo!



.

Escrevo dentro da noite...




Estou escrevendo para não gritar. Para não acordar
os que dormem felizes lado a lado,
os que repousam, aconchegados,
os que se encontram e continuam juntos
e não precisam sonhar
porque não dizem adeus...

Estou escrevendo para não gritar. Para enfunar o coração
ao largo.

E as palavras escorrem salgadas como um córrego de águas mortas
num silencioso pranto.
Tão perto, e nem percebes minha insônia. Nem ouves a confidência.
que põe nódoas no papel para não ter que acordar-te
e se transmuda em palavras, que são estátuas de sal.

Estou escrevendo para não gritar. Para não ter tempo
de acompanhar a noite,
para não perceber que estou só, irremediavelmente só,
e que te trago comigo
sem outra alternativa que o pensamento
- cela em que me debato a olhar a lua entre grades.

Estou escrevendo para não gritar. Para não perturbar
os que se amam
se juntam, e se estreitam, e sussurram na sombra
e passeiam ao luar,

para que as palavras chovam num dilúvio, silenciosamente,
e me alaguem, e me afoguem, e me deixem pela noite a dentro
como um corpo sem vida e sem alma,
a flutuar...


Escrevo dentro da noite - Poema de JG de Araujo Jorge
A vontade é mesmo a de gritar...

Show Geraldo Azevedo...




Show do Geraldo Azevedo no aniversário da CUT-DF.
Muito bom ouvir a boa música brasileira, ainda mais quando se está em ótima companhia! Valeu amigas!

Soneto de Sonhador...

Foto: Jones Selbach

Já não me encontro só nem desgraçado
pois te levo total em meu olhar;
nem poderei viver sem teu agrado
enquanto não consiga te olvidar.



Quando às vezes passeio pelo prado,
a natureza em flor a contemplar,
parece que tu segues ao meu lado
e os dois, formamos um ditoso par.



E prossigo sonhando à luz do dia,
que estás presente em todos os momentos,
na tarde calorosa ou noite fria,



e também de manhã andando a esmo;
porque vencendo obstáculos violentos
sinto que fazes parte de mim mesmo.




Soneto de Sonhador - Menestrel sem Juízo




Mais uma vez, obrigada! Esses versos revelam meu atual viver!

Soneto do Encontro...


Com que prazer te vi chegar um dia,
apenas a manhã desabrochara,
se não viesses eu continuaria
buscando a tua luz que tudo aclara.

Trazes o lenitivo à nostalgia
em que minha existência naufragara;
perdoa-me sentir tanta euforia,
porque tardando mais, menos te amara...

Os versos que componho ansiosamente
são os frutos do sonho; a primavera
que representas para mim agora.

Quando te vejo, torno-me contente
e sinto que se foi tão longa a espera,
valeu a pena o inferno da demora.


Soneto do Encontro - Menestrel sem Juizo

Querido Menestrel, obrigada por me emprestar seus versos pra dizer o que sinto...

Contradição...



Sou a contradição de duas almas, - trago-as
gêmeas no mesmo corpo e unidas num só "eu",
- uma, que sonha e canta, e faz das próprias mágoas
poemas para iludir a dor que já sofreu...
Outra, que vive e pensa, e aos contínuos atritos
da vida, já atingiu a realidade em si,
e sublima o recalque de ânsias e de gritos
num sorriso, que às vezes, sem querer... sorri .



Uma crê no mundo e que trabalha o belo,
que constrói com paciência, pelas mãos,
nas ruínas de um castelo desfeito, o castelo
novo que há de hospedar os velhos sonhos vãos!
Outra fere, é impiedosa, irônica e mordaz,
e há muito já concluiu: - é inútil, não me iludo,
a verdade é a ilusão que dura um pouco mais !



Uma, que quando a sós o olhar longe povoa
de imagens que a lembrança vai traçando a giz,
é sonhadora e ingênua, e ingenuamente boa
ao pensar que algum dia ainda há de ser feliz !
Outra, que afeita à luta, ao trabalhar seus dias,
sofre em silêncio e encontra em seu sofrer remédio,
- diz que Deus é um brinquedo das filosofias,
- a invenção de algum louco em momento de tédio !



Uma, cujo otimismo é uma luz franca e clara,
julgando o mundo bom e achando a vida bela;
outra, materialista e rude, - o mundo encara
com um vago e estranho olhar onde há chamas de vela !



Uma que não cresceu e que se sente criança,
irrequieta e feliz, faz da vida um brinquedo,
outra, - que sepultou sua última esperança
e ao agir previdente, às vezes, sente medo...
.......................................................................



Aquela é a voz feliz das planícies contentes
matizadas com as veias azuis das correntes;
essa, é a voz que caiu e rolou das montanhas!
E é sentindo-me assim que às vezes penso, como
pode ter minha vida a forma de um só pomo
e o sabor de dois frutos de árvores estranhas !
.........................................................................



Sou a contradição de duas almas, - uma
onde nas horas suaves de poesia existo;
outra, - a alma que crê não ter alma alguma
e desceu da montanha tal como o Anti-cristo!



Duas margens debruando a risca de um caminho;
duas almas, se aquela é flor, essa é espinho,
se uma pisa na terra . . . a outra se ergue, no céu.



Duas almas... dois lados de uma só moeda;
uma é vinho, sazona; a outra é vinagre, azeda;
uma é amarga, é só sal. . . a outra é doce, é só mel!





Contradição -  JG de Araujo Jorge

Receio...



Receio de que o anos passem, - e eu sozinho
me deixe para trás, e reconheça então
que fiquei sem ninguém a meio do caminho
e meu sonho de glória esboroou-se no chão

Receio de ser tarde, e quando erguer a mão
a flor cair... cair a flor... ficar o espinho...
Receio de que seja apenas ilusão
a ilusão que ideei a afago com carinho...

Receio de que tudo afinal seja nada,
- e a noite, a grande noite inesperada e escura
me atropele o percurso em meio da jornada...

Receio de que um grito estrangule o meu hino,
- e eu tenha que parar, na infinita amargura
de não ter completado o meu próprio destino!


Receio - JG de Araujo Jorge - Eterno Motivo








Amor...

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção. Pode ser a pessoa mais importante da sua vida.

Se os olhares se cruzarem e neste momento houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.

Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante e os olhos encherem d'água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.

Se o primeiro e o último pensamento do dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Deus te mandou um presente divino: o amor.

Se um dia tiver que pedir perdão um ao outro por algum motivo e em troca receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos e os gestos valerem mais que mil palavras, entregue-se: vocês foram feitos um pro outro.

Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida.

Se você conseguir em pensamento sentir o cheiro da pessoa como se ela estivesse ali do seu lado... se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos emaranhados...

Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a noite... se você não consegue imaginar, de maneira nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado...

Se você tiver a certeza que vai ver a pessoa envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo louco por ela... se você preferir morrer antes de ver a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida. É uma dádiva.

Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Ou às vezes encontram e por não prestarem atenção nesses sinais, deixam o amor passar, sem deixá-lo acontecer verdadeiramente.

É o livre-arbítrio. Por isso preste atenção nos sinais, não deixe que as loucuras do dia a dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: o amor.


Carlos Drummond de Andrade

Se te amo, não sei!


Amar! se te amo, não sei.
Oiço aí pronunciar
Essa palavra de modo
Que não sei o que é amar.

Se amar é sonhar contigo,
Se é pensar, velando, em ti,
Se é ter-te n'alma presente
Todo esquecido de mim!

Se é cobiçar-te, querer-te
Como uma bênção dos céus
A ti somente na terra
Como lá em cima a Deus;

Se é dar a vida, o futuro,
Para dizer que te amei:
Amo; porém se te amo
Como oiço dizer, — não sei.

————

Sei que se um gênio bom me aparecesse
E tronos, glórias, ilusões floridas,
E os tesouros da terra me oferecesse
E as riquezas que o mar tem escondidas;

E do outro lado — a ti somente, — e o gozo
Efêmero e precário — e após a morte;
E me dissesse: "Escolhe" — oh! jubiloso,
Exclamara, senhor da minha sorte! —

"Que tesouro na terra há i que a iguale?
Quero-a mil vezes, de joelhos — sim!
Bendita a vida que tal preço vale,
E que merece de acabar assim!


Se te amo, não sei! - Gonçalves Dias

Dois...

 
Dois...
Apenas dois.
Dois seres...
Dois objetos patéticos.
Cursos paralelos
Frente a frente...
...Sempre...
...A se olharem...
Pensar talvez:
“Paralelos que se encontram no infinito..."
No entanto sós por enquanto.
Eternamente dois apenas.


Dois - Pablo Neruda

Um corpo...





Depois que um corpo...
Comporta outro corpo...
Nenhum coração
Suporta o pouco!


Alice Ruiz

Às vezes procuramos uma saída...

Quantas situações! Quantas portas! Na vida percorremos grandes distâncias, cheias de curvas arriscadas e surpresas agradáveis ou não, assim, passamos a vida toda tentando encontrar algo de que sentimos falta, não sabemos ao certo o que é, nem se vamos encontrar, mas pra isso enfrentamos todo perigo do caminho, pensando e confiando nesse triunfo final. Só quando estamos quase no fim do percurso, depois de percorrer vários caminhos e entrar por várias portas, percebemos que pegamos a estrada errada... mas aí, já não dá tempo de voltar; e nos vemos diante de uma encruzilhada, de um lado, apenas o sobreviver, carregando os dias que ainda nos restam, do outro, a possibilidade de sonhar e viver esses sonhos como se fossem reais, habitando o mundo dos sonhos! Entre realidade e sonho, procuramos uma saída que não seja nem somente um nem outro, mas sim uma saída intermediária, um lugar onde seja possível realizar sonhos, viver... como se nos tivesse sido dado uma nova partida, um novo começo...
Tem sido assim meus dias, a busca por essa saída intermediária!

A vida está lá fora...



Sim, a vida está lá fora e eu envelhecendo aqui dentro, vendo a vida passar, sem passar por ela! Apenas contemplando meus sonhos daqui sem coragem para atravessar a rua e chegar do outro lado, onde tudo acontece! O medo dessa travessia me paralisa me tornando uma mera expectadora desse imenso expetáculo que é a vida, e que está lá fora! Preciso e quero deixar os limites desta confortável janela e me arriscar, antes dos anos passarem roubando-me as condições de travessia! Se for "atropelada" durante a travessia, não tem problema, pelo menos meus pés sentirão, por alguns instantes, o chão, o movimento, a tortuosidade e dureza do caminho, enquanto meus olhos, acostumados somente à paisagem que se podia ver da janela, irão se deleitar e encantar olhando as pessoas, as árvores, as flores... a vida que quero viver... e que está lá fora!

Folhas de rosa...



Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo …

E falo-lhes d’amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente…
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente …

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m’embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado…

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mals fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia…


Folhas de rosa - Florbela Espanca

Mentiram-me...


Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.


Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.

Mentem. Mentem caricatural-
mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho.Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente.Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre.Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre.E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.

E assim cada qual
mente industrial? mente,
mente partidária? mente,
mente incivil? mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?mente,
mente hereditária?mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país
de mentira
-diária/mente.


A Implosão da Mentira - Affonso Romano de Sant'Anna

aos (im)possíveis leitores

"Quem és tu que me lês? És o meu segredo ou sou eu o teu?"
Clarice Lispector

sobre mim...

“Sempre tive a sensação de mal-estar no mundo, uma sensação de não caber no meu espaço, um desconforto diante de meus pares – eu me pergunto: tenho pares? Eu sabia que em mim há uma mulher que tento esconder ferozmente. Tenho medo que as pessoas identifiquem meus excessos, essa quantidade absurda de pernas e braços que camuflo sob a roupa que visto. O que diriam se soubessem das muitas que vivem em mim e tentam bravamente, numa luta corporal, projetar-se do meu corpo? Tomar-me-iam por uma aberração?”

Clarice Lispector