passado





... quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem se submeterem, sobre as suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações.


Marcel Proust


a demissão do derúndio (por decreto)




O nosso governador José Roberto Arruda, (de Brasília), se superou ao “demitir” o Gerúndio na capital federal através de decreto-lei.

A demissão do Gerúndio:
Deu polêmica oficial...
Endorréia, gerundismo:
É uma praga cultural...
Infesta a Língua Portuguesa:
E o nosso tempo verbal...

O governo em Brasília:
No Diário Oficial...
Demitiu o tal Gerúndio:
No Distrito Federal...
Mas o sujeito é teimoso:
E não some do jornal...

O fato ganhou a mídia:
A imprensa noticiou...
É uma piada da boa:
O mundo se gerundiou...
Dólar e telemerchandising:
No gerúndio se enroscou...

É um vício de linguagem:
Em qualquer repartição...
No discurso, no artigo:
Em concurso e redação...
Na escola e na rua:
Na favela e na mansão...

Gerúndio na boca do povo:
Chacota já se tornou...
Blá.Blá.Blá...Nhemnhemnhem:
O fato se proliferou...
Virou piada no Céu:
São Pedro me telefonou...

É gerúndio no Planalto:
No Congresso Nacional...
No telefone e na tela:
O gerundismo é total...
O gerúndio se abunda:
É preferência nacional...

Tem gerúndio na tv:
No jornal e na novela...
A modelo gerundia:
Gerundando-se magrela...
Ouve-se tanto gerúndio:
A alma da gente, gela...

Terá fim o gerundismo?!
Com tanta ignorância...
Teleanalfabetismo:
Leitura sem importância...
O Português não tem vez:
Norma Culta, que distância...

Fazer e estar fazendo:
Estar amando e amar...
Ligar e estar ligando:
Informando e informar...
Gerúndio e Infinitivo:
Cada qual tem seu lugar...

Negociando - providenciando:
Ouve-se no dia-a-dia...
Expressões inadequadas:
Palavras sem sintonia...
Culto à ineficiência:
É voz da burrocracia...

Ligando nós estaremos:
Documento prescrevendo...
Todo mundo enrolando:
Gerundismo pervertendo...
A máquina não funciona:
É o gerúndio corrompendo...

É uma praga virulenta:
Haja contaminação...
Vem da Língua Inglesa:
Em erro de tradução...
Telemarketing e Intermídia:
Fazem a divulgação...

Um basta ao gerundismo:
Ao infinitivo vou voar...
Tenho verbo, falta verba:
Para poder participar...
Estou "rezando" demais:
Para a vida melhorar...


A demissão do Gerúndio(por decreto) - Gustavo Dourado

ressalva




Este livro foi escrito
por uma mulher
que no tarde da Vida
recria e poetiza sua própria
Vida.

Este livro
foi escrito por uma mulher
que fez a escalada da
Montanha da Vida
removendo pedras
e plantando flores.

Este livro:
Versos… Não
Poesia… Não
um modo diferente de contar velhas estórias.


Ressalva - Cora Coralina


o meu olhar


Filósofo em Meditação - Rembrandt


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...


O meu olhar - Alberto Caeiro

os ipês estão floridos



Thoureau, que amava muito a natureza, escreveu que se um homem resolver viver nas matas para gozar o mistério da vida selvagem será considerado pessoa estranha ou talvez louca. Se, ao contrário, se puser a cortar as árvores para transformá-las em dinheiro (muito embora vá deixando a desolação por onde passe), será tido como homem trabalhador e responsável. Lembro-me disso todas as manhãs, pois na minha caminhada para o trabalho passo por um ipê rosa florido. A beleza é tão grande que fico ali parado, olhando sua copa contra o céu azul. E imagino que os outros, encerrados em suas pequenas bolhas metálicas rodantes, em busca de um destino, devem imaginar que não funciono bem.

Gosto dos ipês de forma especial. Questão de afinidade. Alegram-se em fazer as coisas ao contrário. As outras árvores fazem o que é normal - abrem-se para o amor na primavera, quando o clima é ameno e o verão está prá chegar, com seu calor e chuvas. O ipê faz amor justo quando o inverno chega, e a sua copa florida é uma despudorada e triunfante exaltação do cio.

Conheci os ipês na minha infância, em Minas, os pastos queimados pela geada, a poeira subindo das estradas secas e, no meio dos campos, os ipês solitários, colorindo o inverno de alegria. O tempo era diferente, moroso como as vacas que voltam em fim de tarde. As coisas andavam ao ritmo da própria vida, nos seus giros naturais. Mas agora, de repente, esta árvore de outros espaços irrompe no meio do asfalto, interrompe o tempo urbano de semáforos, buzinas e ultrapassagens, e eu tenho de parar ante esta aparição do outro mundo. Como aconteceu com Moisés, que pastoreava os rebanhos do sogro, e viu um arbusto pegando fogo, sem se consumir. Ao se aproximar para ver melhor, ouviu uma voz que dizia: “Tira as sandálias dos teus pés, pois a terra em que pisas é santa”. Acho que não foi sarça ardente. Deve ter sido um ipê florido. De fato, algo arde, sem queimar, não na árvore, mas na alma. E concluo que o escritor sagrado estava certo. Também eu acho sacrilégio chegar perto e pisar as milhares de flores caídas, tão lindas, agonizantes, tendo já cumprido sua vocação de amor.

Mas sei que o espaço urbano pensa diferente. O que é milagre para alguns é canseira para a vassoura de outros. Melhor o cimento limpo que a copa colorida. Lembro-me de um pé de ipê, indefeso, com sua casca cortada a toda volta. Meses depois, estava morto, seco. Mas não importa. O ritual de amor no inverno espalhará sementes pela terra e a vida triunfará sobre a morte, o verde arrebentará o asfalto. A despeito de toda a nossa loucura, os ipês continuam fiéis à sua vocação de beleza, e nos esperarão tranqüilos. Ainda haverá de vir um tempo em que os homens e a natureza conviverão em harmonia.

Agora são os ipês rosa. Depois virão os amarelos. Por fim, os brancos.

Cada um dizendo uma coisa diferente. Três partes de uma brincadeira musical, que certamente teria sido composta por Vivaldi ou Mozart, se tivessem vivido aqui.

Primeiro movimento, “Ipê Rosa”, andante tranqüilo, como o coral de Bach que descreve as ovelhas pastando. Ouve-se o som rural do órgão.

Segundo movimento, “Ipê Amarelo”, rondo vivace, em que os metais, cores parecidas com as do ipê, fazem soar a exuberância da vida.

Terceiro movimento, “Ipê Branco”, moderato, em que os violoncelos falam de paz e esperança. Penso que os ipês são uma metáfora do que poderíamos ser. Seria bom se pudéssemos nos abrir para o amor no inverno...

Corra o risco de ser considerado louco: vá visitar os ipês. E diga-lhes que eles tornam o seu mundo mais belo. Eles nem o ouvirão e não responderão. Estão muito ocupados com o tempo de amar, que é tão curto. Quem sabe acontecerá com você o que aconteceu com Moisés, e sentirá que ali resplandece a glória divina...


Rubem Alves - Tempus Fugit

ode marítima



Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho prò lado da barra, olho prò Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É - sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apopléctica,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?

Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
Real, visível como cais, cais realmente,
O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado,
Insensivelmente evocado,
Nós os homens construímos
Os nossos cais nos nossos portos,
Os nossos cais de pedra actual sobre água verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas,
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso.

Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto?
Grandes Cais como os outros cais, mas o Único.
Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias,
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fundo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha,
Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria.

Ah, que essencialidade de mistério e sentido parados
Em divino êxtase revelador
Às horas cor de silêncios e angústias
Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!

Cais negramente reflectido nas águas paradas,
Bulício a bordo dos navios,
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
Que quando o navio volta ao porto
Há sempre qualquer alteração a bordo!

Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos reflectidos devagar nas águas,
Quando o navio larga do porto!
Flutuar como alma da vida, partir como voz,
Viver o momento tremulamente sobre águas eternas.
Acordar para dias mais directos que os dias da Europa.
Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar,
Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atónitas...

Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe,
E depois as praias próximas, os cais vistos de perto.
O mistério de cada ida e de cada chegada,
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Deste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramam
Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar,
Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,
Para o navio que se aproxima.

Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
E a palidez das manhãs em que se parte,
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um medo
- O medo ancestral de se afastar e partir,
o misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo -
Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fosse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer coisa,
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento,
E só fica um grande vácuo dentro de nós,
Uma oca saciedade de minutos marítimos,
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor
Se soubesse como sê-lo...

A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca.
Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido.
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.

Na minha imaginação ele está já perto e é visível
Em toda a extensão das linhas das suas vigias.
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo.

Os navios que entram a barra,
Os navios que saem dos portos,
Os navios que passam ao longe
(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) -
Todos estes navios abstractos quase na sua ida
Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa
E não apenas navios, navios indo e vindo.

E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar neles,
Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,
Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das despensas,
Olhando de perto os mastros, afilando-se lá prò alto,
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas,
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo -
Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa,
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.

Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu cismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas como certos momentos no Pacífico
Em que não sei por que sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sobre os nervos o facto de que aquele é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar para bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos,
Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!

E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas;
Caí, por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
Sede vós o tesouro da minha avareza febril,
Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação,
Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
Fornecei-me metáforas imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha prò ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!

Soa no acaso do rio um apito, só um.
Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.

(...)


Álvaro de Campos - Ode marítima


ora até que enfim..., perfeitamente...

Saturno devorando um de seus filhos. Francisco de Goya


Ora até que enfim..., perfeitamente...
Cá está ela!
Tenho a loucura exatamente na cabeça.

Meu coração estourou como uma bomba de pataco,
E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...

Graças a Deus estou doido!
Que tudo quanto dei me voltou em lixo,
E, como cuspo atirado ao vento,
Me dispersou pela cara livre!
Que tudo que fui se me atou aos pés,
Como a serapilheira para embrulhar coisa nenhuma!
Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta
E me quer fazer vomitar sem eu ter comido nada!

Graças a Deus, porque, como na bebedeira,
Isto é uma solução,
Arre, encontrei uma solução, e foi preciso o estômago!
Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos!

Poesia transcendental, já a fiz também!
Grandes raptos líricos, também já por cá passaram!
A organização de poemas relativos à vastidão de cada assunto
resolvido com vários -
Também não é novidade.
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...
Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo
para o despejar comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho fim nem vida...


Ora até que enfim..., perfeitamente... - Fernando Pessoa

bala perdida




Os alvos são os esquecidos da nação
Enquanto se fala em bala perdida
Vidas são atingidas por elas ou por omissão?!

A história fica com furos que na carne se faz
Balas que amargam vidas dos que ficaram para trás

No comércio do crime
A vida não tem prazo de validade!

A violência não mais assusta
Só susta!

carrossel



Ainda tenho sonhos, ainda sou criança, resta ainda esperança, só envelheci...
Dentro de mim ainda alimento esses vividos momentos de brincar e sorrir
E no triciclo da vida, pedalo na contramão, fazendo dos instantes vividos
Meu carrossel de emoção!
Onde figura um cavalo marinho que vem das profundezas pra me dar a mão
E esse ser de longe, de onde nunca estive, me faz ver melhor onde passo, enfeitando os caminhos, enchendo-os de laços, esquecendo cansaços, dores, ilusões...
Girando de mãos dadas, seguimos nossa jornada nos alimentando de palavras encantadas, iguais aos dos contos de fadas que transformam nosso ser...
Em cada passo, como pontinhos a ligar, vamos desenhando a vida, mesmo sabendo da existência de bruxas más.
E assim percebo que não estou na contramão, mas sim, que a vida é uma roda, que gira sempre, sem direção...

em meus momentos escuros



Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado
Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.


Fernando Pessoa (1888-1935)

um homem na estrada



Ponho uma estrada neste papel.
Uma estrada como qualquer outra
que entra pela linha do horizonte
e liga o mundo na sua inocência.
Nela, ponho um homem.
Como é exemplar o trabalho do poeta
que faz uma estrada e faz caminhar nela
um pobre ser humano!

Eu o vejo de todos os ângulos.
Olho-o pelas costas e o reconheço digno,
cada vez mais pequeno
sumindo ao longe.
De frente, vejo-o, aproxima-se de mim,
vem alegre e predisposto
à fraternidade.

Pelas margens direita ou esquerda
estou atento; se noto o ridículo
escondo de mim mesmo
e dele.
Não levo rancor
e nem misericórdia.
Estou pronto ao abraço.

O papel é como
a terra. Para que
explicar mais?
Vem o poeta
pega o vento
aterra-o no
papel e a água
solidária escorre
no veio branco
e explode em amor.
Caminho que leva
até o horizonte.
É o que faz belo
o poema, o círculo
do horizonte.
É um vale que
é nossa vida,
circunavegação
de paisagens,
cavalinhos, aeroplanos,
navios,
um homem sozinho
indo pela estrada.

Homem sozinho na estrada.
De longe vem vindo, de longe apagadamente
seu vulto como um estrela sem brilho
e à sua aproximação a estrada
se dilata e trepida
como uma nave em vôo
e ainda tudo é grotesco
como uma máquina: a terra e os seus sapatos,
a roupa e o seu suor, a poeira e a sua fadiga
e nada aconteceu – nem crime ou heroísmo
ou tudo se ignora,
– era apenas um homem
numa estrada.

A estrada estava cansada e viajou.
Os ventos sumiram.
Só a laranja trabalhava,
dia e noite,
só a laranja viajava na sua fina vida de laranja
no galho cheio de manhã.


Um Homem na Estrada - José Godoy Garcia


Um belo poema de um poeta consagrado lá da minha terra... Goiás!


aos (im)possíveis leitores

"Quem és tu que me lês? És o meu segredo ou sou eu o teu?"
Clarice Lispector

sobre mim...

“Sempre tive a sensação de mal-estar no mundo, uma sensação de não caber no meu espaço, um desconforto diante de meus pares – eu me pergunto: tenho pares? Eu sabia que em mim há uma mulher que tento esconder ferozmente. Tenho medo que as pessoas identifiquem meus excessos, essa quantidade absurda de pernas e braços que camuflo sob a roupa que visto. O que diriam se soubessem das muitas que vivem em mim e tentam bravamente, numa luta corporal, projetar-se do meu corpo? Tomar-me-iam por uma aberração?”

Clarice Lispector