Cicatrizes...


Vejo a face marcada e dura da tua dor,
ouço os uivos repetitivos da tua raiva,
sinto o desespero amargo dos teus sentidos
e dói-me o negro acutilante das verdades,
que carregas como culpas,
dos valores calcinados,
corrompidos de eternos ódios e rancores.
Presa fácil de ingenuidade,
das desconfianças e credos,
fechada no labirinto das paredes,
cobertas de antigo e de medos,
numa teia emaranhada de incompreensão,
cimentada de fraquezas e vícios,
na recusa de rasgar uma fresta
e de contemplar-se em admiração,
desnudada de complexos e mitos,
na corrente de mãos dadas com o mundo.
Destruído pelo conflito de ser vencido,
apaixonado, sem amor,
temendo receber o que não sabe oferendar.
Moribundo no vazio do sossego,
em prolongados silêncios,
exercitando o conformismo da solidão,
em sofrimento preocupado.
Mensageiro na riqueza
alucinada dos vocábulos,
do desentendimento confuso e perplexo
dos indecifráveis códigos,
da simbologia da existência.
Dói-me o paradoxo do belo e da tristeza,
do propotente e da vítima,
de ter de sofrer contigo, ser-me cruel.
A minha superficialidade é fuga
ao pesadelo do realismo ofensivo,
que me circunda e me hostiliza.
A consciência do tempo
e da verdade dos instintos,
é a grande cruz que nos pesa na alma,
o pecado da sobrevivência.
Arquitectamos esquemas defensivos
às nossas inseguranças
e retroactivos à criatividade frustrada dos sonhos.

Se pretendo magoar-te,
sou eu que fico ferido.

Dói-me ver-te com tantas cicatrizes.


joão jacinto


Querido João, é uma honra trocar alguns recados contigo e poder me deleitar com sua poesia, na qual me vejo refletida!

Chove também lá fora...

Chove também lá fora e não só dentro de mim!
Onde guardei o entusiasmo?
De repente parece tudo tão pronto e acabado.
Só eu ainda por fazer! Será que um dia fico pronta?!
Quando esse dia chegar, acho que vou desmoronar!
Aí terei de me refazer!

Sentir saudades de quem nunca se viu... construir pontes, laços! Espantar a solidão com conversas, querendo mesmo é estar junto!

Duas noites apenas...

Duas noites apenas e nada mais
Mas o suficiente para reviver a chama
Que estava quase a se apagar
Por falta de lenha que a fizesse crepitar

Onde o tempo, embora presente, deixa de existir
E a reflexão cede lugar ao sentir e pensar
Envolvendo corpo, alma e tudo mais
Em prol de um único objetivo... “amar”

Para que a pele se tornasse mais rosada
Afim de manifestar
O intenso prazer sentido
Entre dois corpos a se tocar

E se deliciando de toques mil
Sentindo cada vibração como um presente
Nesta vida ausente de emoções
É que percebo a transformação que pode causar

Duas noites apenas... e nada mais...?!



em 24/11/03


Eflúvio...


Quem é você?
Que invadiu meu ser
Me fazendo deixar de ser
O que pensava ser
E ser o que realmente sou?

Quem é você?
Que sem grandes esforços
Derrubou barreiras antigas construídas com grades, pedras e concreto
E nesse lugar plantou um jardim
Onde a única coisa que me prende é o perfume e beleza das flores?

Quem é você?
Que insiste em ficar em meus pensamentos
Mesmo quando imploro que saia?

Quem é você?
Que fez de sua ausência, algo insuportável
E dos meus dias, uma eterna espera...?

em 26/01/04



.

Pelo que aconteceu...

Pelo que aconteceu
Não tenho o que lamentar
Tento sentir culpa
Não consigo
Só consigo... lembrar...

em 22/11/03

Aninha e suas pedras ...



Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces.
Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha um poema.
E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede.



Cora Coralina

meu silêncio

Nem eu sei o que diz meu silêncio... tento escutá-lo mas não consigo, ele foge quando presto atenção nele... se encontrá-lo por aí me avise e depois mande o vento trazer o que conseguiu escutar desse silêncio que insiste em despertar a voz que quer calar!!

Apenas duas mãos...

Foto: Sebastião Salgado


Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo...

Drummond

punhado de cinza

Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
– E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...
Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
– E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento... (...)


Florbela Espanca


ps: surpreendo-me a cada dia com o pouco que sou... só sou o que sinto!

Só mais uma noite...

Esta é só mais uma noite em que o ar consegue consumir a pele num instante tão grande como a tua lembrança.

Não vou por aí...





Vem por aqui --- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
--- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
--- Sei que não vou por aí.


José Régio - Cântico Negro

Felizmente...

Felizmente há um abraço que me salva sempre. Duas mãos que me levam ao céu. Um beijo que transporta vida!

aos (im)possíveis leitores

"Quem és tu que me lês? És o meu segredo ou sou eu o teu?"
Clarice Lispector

sobre mim...

“Sempre tive a sensação de mal-estar no mundo, uma sensação de não caber no meu espaço, um desconforto diante de meus pares – eu me pergunto: tenho pares? Eu sabia que em mim há uma mulher que tento esconder ferozmente. Tenho medo que as pessoas identifiquem meus excessos, essa quantidade absurda de pernas e braços que camuflo sob a roupa que visto. O que diriam se soubessem das muitas que vivem em mim e tentam bravamente, numa luta corporal, projetar-se do meu corpo? Tomar-me-iam por uma aberração?”

Clarice Lispector