Ser feliz é uma responsabilidade muito grande. Pouca gente tem coragem. Tenho coragem mas com um pouco de medo. Pessoa feliz é quem aceitou a morte. Quando estou feliz demais, sinto uma angústia amordaçante: assusto-me.Sou tão medrosa. Tenho medo de estar viva porque quem tem vida um dia morre. E o mundo me violenta. Os instintos exigentes, a alma cruel, a crueza dos que não tem pudor, as leis a obedecer, o assassinato – tudo isso me dá vertigem como há pessoas que desmaiam ao ver sangue: o estudante de medicina com o rosto pálido e os lábios brancos diante do primeiro cadáver a dissecar. Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus. Tenho medo da lei natural que a gente chama de Deus. O temor. Os suicidas muitas vezes se matam porque tem medo de morrer. Não suportam a tensão crescente da vida e da espera do pior – e se matam para se verem livres da ameaça.A gente sai de um Alfa para um Ômega e se destrói e trabalha e diverte e... Para quê? Caminhamos para um vórtice – irremediavelmente.Não fazer nada pode ser ainda a solução.Iam confundir isto com suicídio mas é mera coincidência. Tem sentido correr tanto atrás da felicidade, será que basta ser feliz? Será que ser feliz é um estado de tolerância?
Clarice Lispector - Um Sopro de Vida
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